30 October 2007

Dois anos sem o Francelmo

Há dois anos (12 de novembro de 2005) perdi um grande amigo, hoje só lembrança.
Era um velho ambientalista com coração de criança.
Sabe aquelas pessoas verdinhas?
Mas que nunca eram chatinhas?
Era um ambientalista sem ser
Tinha poder mas nunca precisou ter
E no dia 12 de novembro,
Naquela manhã de manifestação,
Ainda dói o coração quando lembro,
Que achei aquele homem em chama
Mais um doido-varrido que acordou do lado esquerdo da cama...
Puro erro, era o Francelmo, meu amigo
Era meu professor querido
Era uma mensagem infinita
Ainda hoje é um grande enigma
Para mim e para muitas pessoas.
Francelmo, rezo um pai nosso pra ti,
Rezo para voltar a ser um guri.

No teu enterro, tudo era poesia,
E cercado de amigos, naquela tarde vazia,
A gente chorou silenciosamente, você ouviu os soluços?
Teve governador que falou bobeira, mas teve bruto que ficou mudo.
E a cena mais bonita, foi ver o local escolhido para seu descanso,
No fim da oração, era fim de dia, últimos raios de sol, ouvimos um canto,
Na goiabeira que fazia sombra em seu túmulo, chorou também um pardalzinho manso.

O Francelmo desencarnou no dia 13 de novembro, uma grande ironia ao PT, que ele há muitos anos já não acreditava mais. Só consegui escrever meu desabafo sete dias depois de sua imolação. Daquilo que escrevi, ainda pulsa dentro a memória, não a dor! Mas a incógnita de uma ação tão forte, quase sem sentido, mas ainda assim muito profunda. Escrevi algo, que gostaria de compartilhar com vocês. E logo depois, coloquei o texto da Eugênia Amaral, doutora em ecologia pela Unicamp e professora da UFMS. Os dois textos foram publicados em novembro de 2005.

Perdoem a ausência de novos textos, nada mudou por aqui, as usinas de álcool estão chegando, os pólos siderúrgicos do Pantanal estão sendo inaugurados, as carvoarias estão sem controle... e Francelmo já dizia tudo isso que está acontecendo.

E quem quiser... que comente!

O Elmo Francelmo
(Para o Francisco do Pantanal)

O Francisco Anselmo,
Tinha o codinome: Francelmo.
Defendia bicho e gente,
Protegia árvore... da raiz à semente.

Quando me apresentaram,
Assim me disseram:
Aqui no MS, é o primeiro ambientalista
Bem centrado e realista, idealista.

Esse cara bacana
Não era contra só usina de cana,
Para a gente ter equilíbrio mínimo,
Lutava contra hidrovia e cia.

Era pai, marido, amigo,
Não era doido varrido!
E quando era preciso,
Dava uma de homem sabido.

Velho Francelmo, que deixou seu povo,
A mente intelectual, faz do homem um tolo,
Quando não compreende sua mensagem final.
Que é fazer em vida mais que racional animal.

Gente boa e sorridente,
Cabra da peste valente,
Que enfrenta prefeito,
E monitora os defeitos.

Dos políticos estúpidos,
Para dar vida aos utópicos,
Sonhando prá gente saber,
Que vale à pena viver!

Ambientalista pioneiro,
Também, ecojornalista primeiro.
Francisco do Pantanal,
Nunca foi um cara boçal!

Ele é dos primeiros a defender o Pantanal!!!
E árvore, Cerrado, animal e vegetal!
Ele fez e viu história,
Logo, deixou memória.

Estúpidas políticas ambientais,
Que degradam minerais, animais e vegetais.
Todas testemunhadas pelo Francelmo,
Que ainda não sei se fez errado ou certo.

Toda sua ação traz reflexão,
Prá gente pensar mais no coração,
Do que tentar achar razão.
Prá compreender essa emoção.

Era mais ou menos assim:
O Francelmo dizia pra mim:
"Meu filho, vamu cumigo
Pra evitar um pirigo!

Vai cabra, pega sua máquina fotográfica
E vamos fazer uma coisa prática,
Passo aí de carro, se disser não, me insulta!!!
E também, é prá depois você não sentir culpa!"

O tiozinho,
às vezes era como mosquitinho,
Ficava umas semanas inteiras
Vigiando as octogenárias figueiras.

Lixão, e os "sem-noção",
Reserva de Cerrado, de um povo já ferrado,
Pólo mínero, siderúrgico, gás-químico,
"Xô Transgênicos", nos espíritos efêmeros!

Na hora do crime,
Ele avisava: "pega rolo de filme!
Os jornalistas devem atuar, flagrar!
E a gente e a natureza tentar salvar!

Tratava todo mundo com respeito
Às vezes, quando um problema não tinha jeito,
Insistia, persistia e sempre agia
O que queria, era dar pro povo vida sadia.

Entendia a burocracia,
E adorava a democracia!
Era só alegria, amigo e ternura,
Cavalheiro, companheiro, falava às vezes com altura, direto e sem frescura!

Eu sou jornalista, ambientalista,
Não sou socialista, comunista,
Nem filiado a partidos com ou sem sentidos,
Sou um rebelde com causa e juízo.

Francelmo escreve uma canção,
Sua vida no planeta não foi em vão.
Lixão, degradação,
Desumana condição.

Nesta batalha silenciada até então,
A crônica final de um homem são,
É gargalhar da "egologia" perder prá ecologia.
É observar uma só utopia virar sabedoria.

Isso só ocorre quando a gente,
Pára um pouco e pensa na mente:
Mais que dor de picada de serpente,
Deve ser o fogo ardente.

Igni Natura Renovatur Integra
(O fogo renova completamente a natureza)
Francelmo, espero que seja um elmo,
Que seja um escudo eterno.

De capacetes antigos,
Que protegiam os amigos,
Na Gálea, viseira de diamante "mui seguro",
"De Júpiter, armado, forte e duro."

Tu, que protegia canteiro, bairro, cidade e Pantanal.
Mesmo sem saber o seu estado atual,
A filosofia diz prá seguir com tua utopia,
Prá recordar de velhas ideologias.

Você nos dizia:
- Meu filho, minha filha!...
(Com seu sotaque cearence-bahiano),
- A ganância cresce a cada ano.

Pra defender nossas riquezas,
É preciso perpetuar nossas belezas,
Da cidade, do Cerrado, do Pantanal às miudezas.
Cotidianas, óbvias, atuais e mundanas.

Quando no povo e nas suas memórias,
Forem divulgadas tuas histórias,
Vão saber que tu libertou a natureza
De ser presa, porque você fez uma "Teresa".

E então, o ser irracional,
Compreenderá que usina no Pantanal
Não é a principal nem a maior ameaça.
E sim, a ambição e a ganância dessa raça.

Allison Ishy

Notas:
1. Igni Natura Renovatur Integra - INRI, segundo alguns ocultistas e filósofos;
2. "De Júpiter, armado, forte e duro." - Luis de Camões.
3. "Teresa" - gíria para a corda feita com lençóis para fugir pelas janelas/muros das prisões.


MARTÍRIO NO SÉCULO XXI
Por Maria Eugênia Carvalho do Amaral

O ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros faleceu no domingo, dia 13 de novembro do ano de 2005 d.C., século XXI. Sua morte, em conseqüência de graves queimaduras provocadas pelo ato voluntário de atear fogo ao próprio corpo, deixou-me chocada, aterrorizada e muito triste. A violência do ato, registrada ao vivo e em cores, transportou-me para um daqueles séculos sombrios em que despojados mártires sacrificavam-se em praça pública por uma causa, por uma fé, por um propósito de dedicação imensurável. Uma dedicação extrema. Sem medidas. Uma causa tão grande e tão poderosa como a própria vida.

É quase impossível raciocinar dentro de parâmetros de tamanha amplitude. E assim, no limiar do racional, fiquei pensando se o Pantanal, se as tais usinas de álcool, se o jogo político e os interesses econômicos de certos grupos valiam a vida do Anselmo. Recuso-me a aceitar que sim. A vida é uma dádiva, é sacra. Os interesses sobre as usinas são profanos. E fui surpreendida por um pensamento talvez romântico: a eterna luta entre o bem e o mal, entre o sacro e o profano. Uma simplificação perigosa. Um deslize quase cínico.

Retomei meu raciocínio e fiquei ainda mais chocada com o que intuí: não existem mártires no século XXI. Mal Francisco Anselmo faleceu, já afloram críticas e mais críticas... Mas não são somente as esperadas, sobre as usinas de álcool, e sim aquelas dirigidas ao ato do ambientalista, como se ele nos devesse um “espetáculo melhor”, como se ele tivesse “aproveitado mal as possibilidades de sair na mídia”. Maldito século XXI! O século da banalização da vida, tornada coisa descartável. O século da deterioração dos valores morais. O século em que roubar se transformou em sinônimo de “tradição da cultura política”. Século XXI... O século em que morrer por uma causa tornou-se piegas, fora de moda, sem sentido.

Recuso-me a aceitar tais mudanças. Ainda acredito em valores à moda antiga. Ainda acredito na palavra dada. Ainda acredito na vida por uma causa. Ainda acredito que as tais usinas de álcool – que eram ruins para o Pantanal há cerca de 30 anos – continuam sendo uma péssima proposta para o desenvolvimento econômico local se instaladas na Bacia do Alto Paraguai.

E, mais do que acreditar na inadequação de tais usinas, acho sua proposta cínica. É puro cinismo retomar uma proposição rejeitada pela sociedade e pelo Estado (Lei 328 de 25 de fevereiro de 1982) e trazê-la de volta, com roupagem esfarrapada, como salvação da lavoura.

E assim permanece uma questão: onde está a memória desse Estado?

Anselmo querido: a luta ambiental em Mato Grosso do Sul ficou órfã e o Pantanal secou suas águas. Agora só há corixos engasgados e rios cortados pela dor da sua perda.

Maria Eugênia Carvalho do Amaral, doutora em Ecologia pela UNICAMP, foi professora e pesquisadora da UFMS. É consultora na área de Ecologia e Biodiversidade.

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